Adão: foi o primeiro Maçom?

Adão era um legítimo Maçom? Esta intrigante questão, para ser adequadamente respondida, requer o desenvolvimento de uma breve reflexão. O que realmente significa ser um iniciado na Arte Real, seja actualmente, seja em tempos imemoriais, é o verdadeiro enigma a ser decifrado. Se considerarmos que só após o surgimento da Maçonaria como entidade formal, com a institucionalização dos ritos e estabelecimento da estrutura organizacional, poderiam existir Maçons operando a plena força, claro fica que jamais teríamos um pedreiro-livre no meio das figueiras do paraíso. Mas, se o verdadeiro espírito de Hiram transcende as eras, e já se mostrava vivo e operante quando o primeiro sopro de vida irradiou-se pelo firmamento, podemos estar diante de uma maravilhosa saga maçónico quando analisamos as mitologias relativas ao início de tudo.

Índice

O mito da criação

Em todas as civilizações existentes ou que já existiram as preocupações com o início dos tempos é lugar-comum. Isto porque faz parte da natureza humana vislumbrar uma explicação racional para todos os mistérios, mesmo quando a própria razão se esgota. As nossas mentes inquietas exigem que as lacunas na totalidade cultural sejam preenchidas de uma forma ou outra, pois o que mais angustia e dilacera as nossas almas é a falta de entendimento sobre as grandes questões da existência.

Considerando que deve ter havido um ponto primordial, ou um momento zero que tudo inicia, a mente criativa do Homo sapiens criou um intrigante arquétipo para elucidar esta área nebulosa do nosso passado. Surgiam as Cosmogonias ou os Mitos da Génese, que relatam o aparecimento da natureza juntamente ao casal primordial. Traçado originalmente num tempo esquecido, mas perpetuado por inúmeras culturas e civilizações ao longo das eras, o drama do primeiro homem e da primeira mulher ainda permanece vivo nos nossos corações e almas. Por se tratar de uma angústia similar a todos os homens, as narrativas apresentam traços comuns, apesar das grandes distâncias geográficas e temporais existentes entre as culturas que as codificaram.

A dominância inicial de trevas imensas que tudo envolvia, por exemplo, é uma lenda contada pelos índios Pima, antigos habitantes da América do Norte. Depois teria surgido a luz, que acabou com a noite eterna. No vale do rio Indo, os Upanixades acreditam que o ser inicial criou o homem a sua imagem e semelhança, por ter se sentido solitário – isso data de seis mil anos atrás. Outro caso interessante vem da África ocidental, da tribo Bassari. Estes guerreiros dizem que Unnumbotte, o princípio criador, gerou o homem, depois o antílope e a serpente, e os obrigou a trabalhar a terra.

Em termos maçónicos, sabemos pelas antigas tradições que o GADU. resolveu, em determinado momento, lançar luz sobre as trevas. Materializava, assim, o sopro divino na forma das criaturas vivas que habitariam os diversos planos da existência. A matéria primordial, ou Pedra Bruta, seria lapidada para adquirir vida. Este substrato natural, simbolizado pelo número 4, englobando os elementos essenciais, seria complementado pelo número 3, o algarismo perfeito. Assim como no nosso avental, onde o quadrado se une ao triângulo espiritual e traz-nos o equilíbrio justo, a vida floresceu e marchou a passos firmes rumo à evolução. O momento inicial de surgimento do homem-maçom dá-se, simbolicamente, durante o rito da Iniciação – mais especificamente quando os candidatos professam os seus juramentos solenes.

O éden entre colunas

Dentre as inúmeras mitologias existentes, vamos ater-nos à versão descrita na tradição Judaico-Cristã, que influenciou toda forma de pensamento no mundo ocidental. Registrada no livro do Génesis, o primeiro do Pentateuco ou de Moisés, ali está descrita uma visão estilizada do que teria sido a estupenda criação do mundo pelo GADU. em sete dias. O Jardim do Éden é uma metáfora de um mundo de sonhos, onde o tempo, o nascimento, a própria vida e a morte não existem. O Criador, ser uno e permanente, resolvera tornar-se finito. Assim o fez por necessidade, não por vontade. O personificador da substância infinita, presente em tudo, criou, então, a natureza. Como faltava um jardineiro para cuidar do seu jardim, lançou-se em mais um projecto arquitectónico: um ser lapidado a sua imagem e semelhança iria habitar aquele mundo de contemplação.

O primeiro homem, Adão, brotou da terra. Com vida eterna, por comer livremente da árvore do conhecimento, vivia em perene contemplação, em conjunção intrínseca com a divindade, como uma extensão ideal da própria substância que o gerara. E para acompanhá-lo, o Criador extraiu do seu corpo a matéria para forjar a companheira ideal, Eva. A obrigação deles seria dominar a terra, se multiplicando. O único impedimento seria buscar a verdade sobre o que é o bem e o que é o mal – estavam proibidos de se alimentarem com os frutos da famigerada árvore do conhecimento.

O que nos impressiona, analisando alguns trechos desta maravilhosa narrativa à luz dos preceitos maçónicos, é que muitos elementos existentes no nosso Simbolismo já operavam a plena força e vigor nos primórdios dos tempos. Destacaremos apenas nove passagens que comprovam esta tese.

O Elemento Terra

No Capítulo 1, versículo 24, existe uma situação inicial onde “disse também Deus: produza a terra seres viventes”. Disso percebemos, metaforicamente, que todos foram forjados da terra. Este elemento, um dos tijolos essenciais formadores da totalidade existencial na visão esotérica e na concepção da Alquimia, já se mostrava como matéria prima operativa do GADU. Na Iniciação maçónica, a prova da terra representa o começo da jornada do aprendiz e aqui, no limiar da génese, também se apresenta como o elemento iniciador do processo existencial.

A Igualdade

Ainda neste primeiro capítulo, é dito que “Criou Deus o homem à sua imagem” (versículo 27). Fica claro que existe uma comunhão entre a substância universal e o ser criado. O principio da igualdade entre os homens, enquanto regidos pela mais elevada ética, é aqui evidente. A mais justa e perfeita igualdade ocorre entre o Criador e os seus filhos. Assim, não é concebível haver qualquer forma de discriminação entre os homens se todos foram feitos da mesma matéria, sendo similares na estética que se espelha no pressuposto criador.

O Ciclo da Vida

Vendo o Capítulo 2, versículo 9, notamos que “do solo fez Deus brotar toda a sorte de árvores, e também a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal”. Aqui temos uma forma de dom da imortalidade sendo repassado aos homens, através da árvore da vida – figura mitológica co-irmã da “fonte da juventude”. Comendo os frutos desta planta, a pessoa jamais morre. Mas, qual o simbolismo desta premissa? Temos duas formas de avaliar esta condição. Podemos considerar que há uma referência a um componente eterno que não se desfaz no momento da morte, ou que existe uma perenidade concreta do ser humano, que nunca experimentaria as desgraças da velhice, das doenças, da decrepitude física e dos sofrimentos pré-mortuários. Mas, por outro lado, devemos filtrar este simbolismo com o as lentes do terceiro e mais filosófico olho. Talvez o homem estivesse ainda numa fase de total imaturidade em relação aos martírios e às dificuldades da vida, como Sidartha Gautama enquanto preso no seu palácio, antes da “iluminação”.

Como qualquer criança na primeira infância, a morte é uma figura inexistente, e todos se acham eternos e invulneráveis às mazelas normais de qualquer ser vivente. Por este segundo prisma, percebemos uma simbiose com a situação do candidato. Ele deve vislumbrar a sua condição natural e passageira na primeira prova, na câmara das reflexões. Ter noção da nossa limitação física e temporal é condição essencial para se iniciar nos mistérios da Ordem. Portanto, quem ficar satisfeito apenas com o acesso aos frutos da árvore da vida, não tem condições para ser indicado como obreiro.

Discernir entre o Bem e o Mal

Nos versículos 16 e 17 é dito que “E Deus deu esta ordem: de toda árvore do Jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento não comerás”. Aqui volta o risco de manter o jovem nas trevas, pois além de se manter sem noção da sua incapacidade de viver eternamente, é-lhe mandado que nunca busque a sabedoria sobre o que é certo e errado, o que representa a vida justa e recta, sem vícios, e o caminho do mal. A verdade sobre a virtude e o terror são negados ao homem. Deste modo, Adão via-se diante de um dilema: seguir cegamente as orientações expressas ou buscar a luz do conhecimento, estando pronto para arcar com as consequências?

Faça-se a Luz!

A mais clara conexão entre a saga de Adão e a jornada do Aprendiz está relatada, de maneira primorosa, no Capítulo 3, versículo 5: “no dia em que comeres da árvore do conhecimento, se vos abrirão os olhos, e como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal”. Aqui, só falta aguardar o acorde de Zaratustra para se descrever um dos momentos mais marcantes da nossa vida maçónica. Abrir os olhos é a metáfora equivalente a retirar as vendas, que impedem a acção da nossa visão espiritual sobre a realidade. A comunhão com o infinito, que é a substância divina se estabelece exactamente neste momento, na forma da autoconsciência adquirida, sabendo julgar, agir e ser completamente responsável por todos os seus actos. Em suma, tornamo-nos livres. Esta manifestação livre da vontade se apresenta no versículo 6 , quando é relatado que Eva e Adão comeram o fruto da árvore do conhecimento.

O Avental Primordial

Em seguida ao acesso à verdadeira sabedoria, relatado acima, vemos mais um elemento fundamental da nossa ritualística sendo introduzido na cena primordial. O avental, que cobre os três chakras cabalísticos mais inferiores, se apresenta na forma de uma cinta com folhas que são colocados no casal inicial, imediatamente após abrirem os olhos – isto está no versículo 7 , “Abriram-se, então, os olhos, e vendo-se nus fizeram cintas com folhas de figueira para si”.

O Auto-Conhecimento

No capítulo 3, versículo 10 e 11, Adão se manifesta afirmando que tem consciência de estar nu. Pela primeira vez na vida ele adquirira esta capacidade tão elementar a todos: de se auto-enxergar. A metáfora da nudez, aqui, representa a condição do ser humano quando livre de todos os atributos superficiais. Assim permanece apenas a sua essência. Esta é uma premissa básica de quem busca a verdade. Primeiramente temos que conhecer a nossa realidade, sabendo exactamente quem somos, para depois decifrar os mistérios do universo. Este pressuposto absoluto, que escancara a nossa finitude temporal como um dos grandes mistérios do nosso ser, estava registrada no frontão do templo a Apolo, em Delfos (gnothi sauton, ou nosce ipsum em latim). O acto de se conhecer, de enxergar fundo nos próprios olhos atingindo o mais obscuro labirinto da alma, é condição indispensável a todos que desejam a plenitude.

A Virtude do Trabalho

O exercício de um trabalho honesto e digno, como bem sabemos, é obrigação elementar de todo Maçom. Ganhar a vida com os próprios esforços, derivados dos méritos e talentos individuais, é predicativo indispensável aos obreiros. Um Maçom não pode ser um ente imprestável, que vive à sombra de outro, como um parasita. Este preceito básico incrivelmente aparece, de maneira directa, no versículo 17 e 19 deste mesmo capítulo. Vemos que “disse Deus a Adão: …em fadiga obterás, da terra, o sustento.

No suor de teu rosto comerás o teu pão, até que tornes a terra, pois dela foste formado, porque és pó e ao pó retornará”. Portanto, a necessidade de exercer efectivamente um trabalho já se tornava uma norma inquestionável ao querido Adão. Ele abandonou a vida fácil da colecta de frutos, na qual se mantinha em contemplação vegetativa permanente, tal qual faria um bom e legítimo Maçom contemporâneo.

A Liberdade

Liberdade pode ser definida como a capacidade de conhecer, julgar, agir e ser responsabilizado por isso. Vemos que a premissa básica do ser livre é ter conhecimento adequado sobre qualquer evento, principalmente quando diante de um dilema ético. No final do capítulo 3, é revelada a Adão a sua nova condição: “Disse Deus: eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal” (versículo 22). Adão apresenta-se como um ser humano pleno, com noção da sua finitude e das suas limitações, e totalmente livre para agir conforme a ética mais justa, sendo também o único responsável pelos seus actos, pois agora conhece o caminho do bem e do mal. 3-

Conclusão

As primeiras manifestações ritualísticas, segundo muitos estudos, já operavam embrionariamente no seio da mãe África. Há milhões de anos em comunidades humanas fincadas na planície de Olduwai já se praticariam cerimónias com nuances do simbolismo actual. Posteriormente, o culto à Akhenaton, o deus-sol venerado na cidade perdida de Amarna, aprimoraria tais ritos. Mais aperfeiçoamentos seriam incorporados pelo contacto com os cultos a Elêusis na Grécia, com as empreitas dos Collegia Fabrorum de Roma e pela chegada do esoterismo dos Essénios. Na rotina das Guildas medievais o valor do trabalho seria destacado. Chegamos com força à época da lenda de York e dos famosos Manuscritos Cook e Regius. Os Cátaros, os Templários e a reacção da Santa Inquisição marcaram com fé e sangue os nossos primeiros catecismos.

A fundação da Royal Society pode ter sido o catalisador que faltava para a publicidade experimentada pela primeira vez em 24 de Junho de 1.717, com o surgimento da primeira obediência, em Londres. A nossa tradição, enquanto sociedade iniciática organizada, sofreu todas estas influências ao longo da sua história. Seguindo esta linha temporal, que considera a formalização da Ordem como condição essencial para o reconhecimento dos legítimos obreiros, fica evidente que não seria possível existir um iniciado em tempos remotos.

Mas, se pensarmos na Maçonaria como um estado de espírito intangível e inefável, que norteia as nossas vidas mostrando o caminho justo a seguir independentemente de haver ou não qualquer estrutura formal para regulamentar este estado da alma, vemos que existe algo mais do que a historiografia oficial nos apresenta. Por esta forma de encarar os factos, quando surgiu o primeiro homem tocado pela verdadeira luz maçónica, teria aparecido a filosofia mais sublime jamais criada.

Os conceitos, os princípios e as verdades ancestrais que fundamentam a nossa Ordem, e que se cristalizam nas almas dos legítimos Irmãos, surgiram muito antes que qualquer rito ou doutrina oficial fosse registrado – floresceram num tempo há muito esquecido, perdido no meio das brumas da eternidade. E, deste modo, a saga de Adão pode perfeitamente ser considerada uma poderosa jornada pelas Colunas de Hiram.

Carlos Alberto Carvalho Pires, M. M.

Bibliografia

  • “Bíblia Sagrada”, tradução de João Ferreira Almeida, Editora da Sociedade Bíblica do Brasil, SP, 2002;
  • Campbell, J. “O Poder do Mito”, 1ª Edição, Editora Palas Athena, 1990;
  • MacNulty W K , “Maçonaria: uma Jornada por Meio do Ritual e Simbolismo”, Editora Madras , São Paulo , 2.006 ;
  • Pires, Carlos A C, “Origens – Em Busca do Primeiro Maçom” Revista Maçónica “A Verdade”, Editada pela Glesp, Edição 461, Julho Agosto 2007;
  • Ritual do Simbolismo do Aprendiz Maçom, Editado pela GLESP, SP, 2001;
  • Robinson JJ ,“Os Segredos Perdidos da Maçonaria”, Editora Madras, SP, 2005.

Fonte: https://www.freemason.pt/adao-foi-o-primeiro-macom/

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