Mar Morto

Para os ecologistas, o mais baixo reservatório de água salgada da Terra é uma maravilha da natureza. Para a indústria química, uma mina de ouro. Para a política, o ponto crucial de uma luta sem trégua por água no Oriente Médio. Uma equipe da GEO visitou as margens do Mar Morto, em Israel e na Jordânia – e encontrou o futuro não resolvido de uma vasta região.

Pingentes de sal, parecendo dentes de tubarão, se projetam do teto desta caverna, na íngreme margem jordaniana do Mar Morto. Desde tempos imemoriais, habitantes da região consideram este local ameaçador – e lhe deram um nome funesto.

LITORAIS COM CICATRIZES BRILHANTES – uma consequência da constante exploração do mar
Dolinas de água salobra, colorida pela ação dos micróbios, estendem-se ao longo da margem, perto do oásis israelense de En Gedi. As crateras se formam quando o lençol freático lava tão intensamente blocos de sal subterrâneos que o chão sobre as cavernas desaba.

PAISAGENS CRIADAS PELO HOMEM – o sal cristalizado pelo sol
A terça parte meridional do Mar Morto já teria secado há muito tempo se duas indústrias químicas, na margem israelense e na jordaniana, não a enchessem constantemente. Estações de bombeamento levam grandes quantidades de água da parte norte do mar até suas enormes piscinas de evaporação, onde se extraem magnésio, cloreto de potássio e bromo.

UM ATRACADOURO É TESTEMUNHA: a água recede mais e mais
Israelenses de En Gedi descem um barco salva-vidas até a água. Antigamente, eles poderiam ter usado o píer. Como os dois Estados limítrofes desviam as águas afluentes, o nível do Mar Morto caiu – esse nível vem se reduzindo em 1 metro, ano após ano.

Àtardinha, o vento que varre pedaços de papel pela margem acidentada do Mar Morto forma marolas de espuma sobre as ondas. São seis e meia da tarde. O lado israelense, no qual me encontro, já está faz tempo à sombra dos rochedos de 500 metros de altura. As colinas na outra margem, do lado jordaniano, brilham em suaves tons avermelhados, iluminadas pelo sol poente.
Entro na água. Oleosa, límpida e suave como seda, ela envolve minha pele; mas arde nos olhos como ácido. Um terço desta água é composto por sal, daí sua enorme força ascendente. Estou literalmente sentado sobre a superfície líquida. Se me viro de bruços, minhas costas ficam fora d’água, e sou obrigado a esticar o pescoço para que o sal não me penetre os olhos. Nado de peito é impossível.
O leito marinho, branco e áspero, está cimentado com uma densa camada de sal. A rebentação contém infinitas bolinhas brancas – o sal, moldado dessa forma pelas ondas. O vento forte chicoteia uma garrafa plástica vazia por cima da água.
Dizem que um banho neste mar embeleza a pele, ameniza dores crônicas e aumenta o bem-estar. Mas, agora, o que ele oferece são distorções estéticas, pois as margens do Mar Morto se transformaram em uma terra estéril, fraturada.
O mar está secando. Em alguns trechos, a água de odor forte desnudou centenas de metros de terra de ninguém – uma vastidão de ar escura, salpicada de placas brancas e quebradiças de aragonita, mineral calcário. Espalhados por toda parte, pedaços de pau de arribação, desbotados pelo sol, lembram os ossos de um cemitério de elefantes. E em muitos lugares há crateras se escancarando no chão – buracos de 10, 20 metros de profundidade, cheios de um caldo espumante tingido de vermelho, verde ou preto, devido aos micro-organismos.

 

O CANAL, UM PROJETO BILIONÁRIO, deve trazer a esperada salvação

Israel e Jordânia estão privando o mar da água doce de seus afluentes. Esses cursos fluviais são desviados para a coleta de água potável, para alimentar os irrigadores de gramados e para as grandes plantações agrícolas – como as de maçãs, exportadas para a Europa. Com isso, o nível do Mar Morto, registrado por mareógrafos, está caindo 1 metro por ano.
Agora, um canal de 175 quilômetros a ser aberto por um custo biliardário deverá trazer água do Mar Vermelho. O projeto é controverso. Experiências preliminares levantam o temor de que o novo duto possa arruinar completamente o Mar Morto, em vez de salvá-lo. Isso porque as águas do Mar Vermelho não se adequariam à preservação do Mar Morto. O alerta é de que a mistura das duas poderia gerar ácido sulfídrico e exalar um terrível cheiro de ovo podre pela região. Mas os cientistas não estão seguros dessa tese.
Alguns moradores das margens do Mar Morto estariam se sentindo ameaçados por uma catástrofe. Monges de um mosteiro próximo consideram-no a porta de entrada do inferno. Há quem ganhe muito dinheiro com ele, pois extrai potassa (carbonato de potássio) – usado na fabricação de adubos – dos sais dissolvidos na água. E há aqueles para quem o mar é completamente indiferente.
Conhecerei a todos nas duas semanas em que tentarei circundá- lo em sentido horário. São 200 quilômetros ao redor de uma lâmina d’água que resume os anseios e temores de toda a região – tanto no mundo judaico quanto no árabe.
O banho de mar é a iniciação. Visto minhas roupas molhadas, levadas para a água pelo vento, atravesso a terra estéril e volto ao kibutz. En Gedi – um oásis ao pé de penhascos, sobre os quais reluz uma fina luz da lua. Meus cabelos estão cheios de sal. Estou com calor, calor interno, como se houvesse aceso uma lâmpada dentro de mim.

 

Diante do balneário israelense de En Bokek, os visitantes bóiam nas águas extremamente salinas. A dura realidade fica por conta dos diques, margeados por depósitos salinos rígidos como concreto. Há tempos, uma indústria de cloreto de potássio se estabeleceu nesse ponto do litoral do Mar Morto. Os turistas veraneiam em uma das piscinas de evaporação.

 

O SALVA-VIDAS

“Que bom que não lhe aconteceu nada”, diz Manuel Barak, o gigantesco policial grisalho de En Gedi, quando revelei minha excursão noturna de natação. “Não se deve nadar após as 17 horas. Nesse horário alguns já morreram afogados no Mar Morto.”
Afogados? Num mar em que coisa nenhuma submerge?
Barak explica: muitas vezes, o forte vento do entardecer empurra as pessoas para longe das margens. Elas entram em pânico, tentam nadar e engolem ou aspiram água. Essa água, salgada como salmoura, absorve líquido do corpo através das bolhas de ar do pulmão; o sangue fica espesso, e um edema se forma nos pulmões. Em poucos minutos a respiração para. Algum tempo atrás uma mulher morreu sufocada dessa maneira.
Quem quiser sobreviver nessas situações no Mar Morto tem de boiar e se deixar levar. Assim, em pouco (às vezes em muito) tempo a pessoa é empurrada de volta à margem, diz Barak, o “salva-vidas” do Mar Morto. Ele e seus ajudantes já retiraram da água um menino de 5 anos depois de ele ter boiado por cinco horas. Seus pais pertenciam a uma seita sionista radical, que rejeita o Estado israelense porque ele não segue a Torá (Lei Mosaica) ao pé da letra. Quando Barak quis interrogar o garoto, seu pai vociferou: “Não diga nada! O policial não é dos nossos!”.

 

Para as mulheres muçulmanas, a praia de Amã, na Jordânia, é indecorosa; mas homens e crianças brincam à vontade. A lama de alto teor mineral, oferecida na Europa a preços astronômicos no curso de tratamentos medicinais, colhe-se com as mãos em muitos lugares da margem. Um sacerdote greco-ortodoxo mergulha uma garotinha nas águas do Rio Jordão, onde Jesus teria sido batizado

 

 

SAIS DO MAR MORTO COMO ADUBO: uma base para a alimentação mundial
Um décimo do adubo à base de cloreto de potássio provém das instalações de evaporação às margens do Mar Morto. O forte aumento da demanda por alimentos causou a subida inesperada dos preços do cloreto de potássio.

 

Em outra ocasião, Barak resgatou o corpo de uma mulher. A parte inferior, coberta pela água salgada, estava tão bem conservada como se ela tivesse morrido havia pouco tempo. Mas a parte de cima, exposta ao sol, estava terrivelmente decomposta – e sem os olhos.
É um mar inclemente.
Manuel Barak, de 70 anos, tem corpo de atleta jovem – ele lembra John Wayne. Ele ajudou a construir o kibutz En Gedi, que fica entre o mar e o deserto escaldante. Certa vez dirigiu 70 quilômetros para buscar leite para os bebês dos kibutzniks (moradores do kibutz). A viagem levava um dia – havia ocasiões em que o leite azedava enquanto Barak voltava, à noite. Diversas vezes ele teve de enfrentar o fogo inimigo dos palestinos – cujas terras os kibutzniks ocuparam. Por isso, até hoje, ele carrega uma metralhadora no banco do passageiro de seu jipe.
Ao menos uma vez Barak pôde comprovar a face inofensiva do Mar Morto: certa noite, um professor de Haifa o colocou com pesos na água, deu-lhe de beber e depois colheu sua urina com uma cânula, para medir em seu corpo uma possível alteração do teor de sal. O experimento tinha por objetivo testar a veracidade da teoria segundo a qual quem permanece por muito tempo no Mar Morto resseca de dentro para fora. Mas no dia seguinte a urina de Barak não estava mais salgada do que na noite anterior.
A TERRA SE ABRE
Eli Raz ama este mar.
Ele quer salvá-lo, tem lutado por isso a vida inteira. Mas é obrigado a observar o mar morrer aos poucos, ano após ano.
São sete e pouco da manhã. O sol ainda é suave. Eli Raz caminha pela margem desolada do espelho d’água de alta salinidade – um asceta rabugento, com óculos de alpinista, calças curtas e botinas pesadas. Geólogo por formação e cultivador de tâmaras por opção, é um homem estranho – e um dos mais profundos conhecedores do Mar Morto. Seu celular toca de hora em hora. Sem distinção, ele atende rosnando – sejam jornalistas, sejam ambientalistas ou políticos.
Há 20 anos Raz examina as dolinas, depressões conhecidas como as cicatrizes do mar. São mais de 2.500 goelas de até 40 metros de largura e 25 metros de profundidade que marcam a costa ressecada. Junto com outros cientistas, ele descobriu como se formam essas fendas. Como o nível do mar está continuamente abaixando, a água dos lençóis freáticos penetra cada vez mais profundamente no solo. Ela dissolve as camadas de sal nas margens e, com isso, cria fraturas, que deixam à mostra espaços vazios.
Essas crateras são traiçoeiras. Já tragaram um camping inteiro – e pessoas. Até Raz correu sério perigo. Em 2003 o pesquisador quase se tornou uma vítima mortal das dolinas. Ele estava à beira de um desses buracos, preparando-se para jogar uma trena dentro dele, quando a terra cedeu sob seus pés.
Ao recobrar a consciência, Raz se encontrava nove metros abaixo do chão. As paredes eram escuras e quebradiças, íngremes demais para escalar. “Pelo menos eu tinha um rolo de papel higiênico”, conta. Morto de medo, ele usou o papel para escrever seu testamento e cartas a entes queridos. Ele atingira o limite: infinitamente perdido e infinitamente sozinho, obrigou-se porém a acreditar em sua salvação – a exatos 400 metros abaixo do nível do mar e nove de profundidade dentro do buraco.
Raz resistiu 14 horas em seu túmulo, mal conseguindo respirar de tanto medo. Pensava nos netos. Por fim, sentiu-se estranhamente protegido na imensidão da natureza. E decidiu que já não importava se morresse ali.
Finalmente, alguém no kibutz deu por sua falta – e Eli Raz foi salvo.
Teimoso, o geólogo de 68 anos continua pesquisando sumidouros. Três, quatro dias por mês, ele vai para a terra de ninguém à beira do Mar Morto e documenta alterações em 130 crateras. Ainda hoje ele se posta desafiadoramente à beira dos buracos como a perguntar: “Estão vendo? Já não tenho medo da morte”.
Por volta da hora do almoço, sob o sol inclemente, ele entra em seu empoeirado jipe e ouve a “Sonata ao luar”, de Beethoven. Depois volta ao escritório para inserir no computador os dados coletados, telefonar, fazer estudos – e manter a luta contra a construção do canal concebido para levar água do Mar Vermelho ao Mar Morto.
O CANAL

Em nenhum outro lugar do mundo se luta de forma tão desesperada por água como no Oriente Médio.
Cem anos atrás havia cerca de 1 milhão de pessoas na região – hoje são aproximadamente 20 milhões. O conflito político intensifica a escassez de água natural. Israel, o player mais poderoso, serve-se dos estoques de água subterrânea. Para o Mar Morto não sobra nada. No passado, o Rio Jordão despejava cerca de 1,5 bilhão de metros cúbicos por ano na depressão. Atualmente esse curso d’água mais se assemelha a um pobre regato de água salobra.
O “Canal da Paz” poderia ser uma solução? De acordo com os planos, ele terá capacidade de levar 1,8 bilhão de metros cúbicos de água por ano do Mar Vermelho para o Mar Morto – e ainda ativar usinas hidrelétricas. Quase a metade dessa água deverá ser dessalinizada artificialmente, para atender aos moradores da região e suas lavouras.
Nos últimos 100 anos essa solução vem rondando a cabeça dos engenheiros. Eles calcularam a construção incontáveis vezes, e incontáveis vezes concluíram a mesma coisa: o projeto é antieconômico. É possível produzir energia elétrica e água potável de maneira mais racional. Mas agora, um “dividendo de paz” foi acrescentado ao projeto. Os lados em litígio – jordaniano, palestino e israelense – argumentam em uníssono que o canal promoverá a paz na região, e, por isso, deveria ser financiado pela comunidade internacional. Isso certamente não tornaria a obra lucrativa, mas ao menos garantiria seu custeio.

Em Israel, o geólogo Eli Raz, respeitado opositor do projeto, assegura que o canal só fará acelerar a catástrofe ecológica no Mar Morto. Segundo ele, no caso de um terremoto a água salgada do canal vazaria e contaminaria as reservas subterrâneas de água doce; alterações nas correntezas marinhas danificariam gravemente as formações de coral no Mar Vermelho, o que ameaçaria a indústria do turismo egípcia. Mas Raz é contra a ideia do canal principalmente porque outras eventuais consequências de um megaprojeto como esse são incalculáveis.

 

Em um kibutz israelense um trabalhador seleciona pimentões recém-colhidos. Jordânia e Israel, que desviaram quase todos os afluentes do Mar Morto, usam esse potencial hídrico para irrigar suas plantações. Dessa forma eles consomem dois terços de toda a água doce existente no Oriente Médio. O nível do Mar Morto está caindo, e em consequência disso formam-se as dolinas, que destroem lavouras – como aqui, em Al Mazra, na Jordânia.

Ele insiste: existe uma solução mais racional. Israel poderia dessalinizar água do Mar Mediterrâneo e deixar para os jordanianos e os palestinos a corrente que ainda escoa pelo leito do Rio Jordão. Dessa forma se economizaria não só o trabalho com o canal como o gigantesco custo das bombas. A sugestão parece razoável; mas a razão desempenha um papel secundário nesta região.

 


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O JUÍZO FINAL

Frade Achilios, monge de hábito preto, barba comprida e olhar severo, me leva a um terraço. Muito abaixo de nós, borbulha um riacho sujo. Sacolas plásticas grudam nos arbustos, e o fedor chega até nós. “Os esgotos de Jerusalém oriental correm sem saneamento para o Mar Morto. Como é possível alguém querer se banhar lá?”, pergunta, cheio de desprezo.
Mar Saba, de onde vislumbramos o interior do país, é um dos mais antigos mosteiros da cristandade. De difícil acesso, ele está localizado em um desfiladeiro no Deserto da Judeia – a faixa de terra estreita e vazia que se liga à margem ocidental do Mar Morto -, onde Jesus teria jejuado durante 40 dias, atormentado por Satanás. Nos primeiros séculos da era cristã, milhares de eremitas seguiram os passos de seu Salvador, abrigando-se em cavernas – entre eles estava o devoto Mar Saba, da Capadócia.
Segundo consta, ele fundou seu mosteiro no ponto que lhe foi indicado pela Virgem Maria: o Vale de Kidron, de elevado simbolismo. O vale liga Jerusalém, o mais sagrado sítio da cristandade, ao Mar Morto, o mais profano. Desde 484 d.C. a Santa Missa era rezada impreterivelmente todas as manhãs em Mar Saba – exceto nos anos de 614 e 636, quando tropas persas e árabes promoveram uma carnificina, eliminando todos os monges.
Atualmente, Mar Saba é habitado por Achilios e mais 15 frades de hábito preto. O mosteiro é um labirinto de escadarias, quartos, salas e capelas com janelas emolduradas em azul-claro e cúpulas de cobre. Do lado de fora desse refúgio, os monges reconhecem, por toda parte, advertências inequívocas acerca do fim do mundo, que estaria próximo: as múltiplas guerras, as epidemias de fome, os terremotos.
E já não se encontram manifestações disso até no cotidiano? O frequente aparecimento de três algarismos 6 na numeração dos cartões de crédito e nos códigos de barra não seriam sinais do demônio?
O frade Achilios deixa uma dezena de peregrinos romenos passar pela porta diminuta; as mulheres do grupo precisam esperar do lado de fora. Durante horas elas permanecem imóveis sob o sol escaldante. Recentemente, os frades debateram se não deveriam mandar construir para os visitantes um banheiro e uma cobertura a fim de protegê-los da inclemência do tempo. Mas acabaram por rejeitar o projeto. É proibida a entrada de mulheres em Mar Saba.

 

CAMPONESES CONSOMEM MAIS DE 60% da água doce do Oriente Médio

 

Achilios mostra aos homens a múmia “intacta” de São Saba. Observadores com menos convicção religiosa talvez a considerassem um tanto macilenta e esburacada. Mas os romeiros se ajoelham, beijam o sarcófago de vidro ao redor da múmia e iniciam um coral. Na realidade, eles beijam tudo: a mão de Achilios e, mais tarde, alguns dos 250 crânios – restos mortais dos monges assassinados pelos muçulmanos. Os crânios, explica Achilios, exalam um perfume celestial. Faço uma tentativa: eles recendem a terra e poeira.
Depois disso, o anfitrião serve uma caneca de café, um bombom e um ouzo – licor de anis grego. É o momento apropriado para explicar aos fiéis por que a localização de Mar Saba é tão auspiciosa do ponto de vista da fé religiosa.
No dia do Juízo Final, afirma o frade Achilios, um portão dourado se abrirá em Jerusalém, e por ele todos os ortodoxos entrarão no Paraíso. Ao mesmo tempo, uma torrente de sangue carregará os pecadores, as prostitutas, os hereges e os maçons para baixo, através deste desfiladeiro, até o Mar Morto, onde a boca do Inferno há de se escancarar, na condenação eterna. Mar Saba é a poltrona nobre de onde se assistirá ao último dia da humanidade.
“É apenas uma ilustração, uma metáfora”, diz frade Achilios. “Aceita mais um ouzo?”
NO SECO
Faisal Saed, camponês falido, possui o automóvel mais imponente de Jericó: um enorme Chevrolet 1966, verde-claro, com arremates de cromo polido, bancos de couro vermelho e um vidro elétrico traseiro. Veículo espaçoso, mas de autonomia limitada. Da casa de Saed, o Mar Morto parece bem próximo. Mas se quisesse ir de carro até aí, o lavrador precisaria de permissão das autoridades israelenses com semanas de antecedência – e, provavelmente, jamais conseguiria chegar até a margem.
Jericó, um “Território-A” segundo os termos do Acordo de Oslo, de 1993, é administrada pelos próprios palestinos. Uma ilha de autonomia em meio a “Territórios-C” – terras pertencentes aos palestinos mas controladas por soldados israelenses.
Mais da metade da Cisjordânia é composta dessas zonas-C – e entre elas estão as margens do Mar Morto. Quando – e se – os palestinos têm autorização de ir até a água é uma decisão a cargo dos soldados nos postos de controle. E seus critérios são bastante aleatórios. Na maior parte das vezes eles simplesmente mandam os motoristas de Jericó voltar para o lugar de onde vieram.
Portanto, Faisal Saed usa seu Chevrolet só em trechos curtos. Até o trabalho, para um café, e de volta para casa. Vidros abaixados, cabelos penteados para trás, um cigarro no canto da boca, dois celulares na mão direita – eis o retrato dos vencedores.
Saed não é, contudo, um vencedor.
Sábado pela manhã, pouco após as 6 horas, a cidade ainda dorme. Ele está de botas de borracha, dentro de uma grande poça de barro, operando uma antiquada britadeira. Seu trabalho é ampliar o poço, e, para isso, ele deve perfurar 110 metros. Uma máquina moderna daria conta da tarefa em algumas horas – Saed, entretanto, trabalha durante seis semanas. Em qualquer outro lugar sua Star drilling machine, fabricada nos Estados Unidos em 1970, estaria em um museu. Mas aqui é considerada uma ferramenta vital – uma das poucas britadeiras existentes em toda a Cisjordânia.
Os israelenses cuidam para que os palestinos não se aventurem muito nos poços. Segundo os termos do Acordo de Oslo, os israelenses têm permissão de fazer perfurações profundas na Cisjordânia em busca de água: 400, 500 ou 600 metros; mas os palestinos estão autorizados a escavar, no máximo, até 150 metros. E os israelenses permitem a abertura de poços novos só em casos extraordinários. Sanear poços velhos requer uma desgastante guerra burocrática.

 

A PRÓXIMA GUERRA NO ORIENTE MÉDIO será por causa da água?

Oitenta por cento da água existente na Cisjordânia é usada pelos israelenses. E como eles estão perfurando a terra cada vez mais fundo, o nível dos lençóis freáticos está abaixando – a água, em consequência disso, está ficando mais salgada. De acordo com a “associação da água” local, dos cerca de 100 poços existentes no passado em Jericó, a metade já pode ser considerada imprestável.
“O Acordo de Oslo é o pior já assinado por um palestino na história”, declara Faisal Saed.
O agricultor já foi um homem rico: 100 hectares de terras cultiváveis, 70 famílias empregadas e uma nascente incluída entre as mais ricas da região. Mas no ano 2000 ela secou, e os campos desertificaram. Saed dispensou seus trabalhadores, vendeu suas casas e se afogou em dívidas. E como uma desgraça raramente vem sozinha, ele sofreu um infarto em 2004. No ano seguinte, sua mulher descobriu que tinha câncer. Agora, Saed sobrevive como mecânico e, de tempos em tempos, reforma algum poço velho. Mas ele não vende seu Chevrolet.
É possível que Jericó, a cidade mais baixa do mundo, tenha sido o primeiro assentamento humano com habitações solidamente construídas. Há cerca de 10 mil anos, os homens do Levante e da região hoje conhecida como o Sudeste da Anatólia passaram paulatinamente de caçadores e coletores a lavradores.
Até 1967, o Vale do Jordão era tido como a horta da região. Depois veio a Guerra dos Seis Dias, travada, entre outros motivos, porque os israelenses temiam que os palestinos lhes tirassem a água. Atualmente o Estado judaico obtém mais de 30% da água que consome nas fontes localizadas nos territórios ocupados.
A maioria dos camponeses do enclave palestino de Jericó desistiu das lavouras pouco a pouco – devido ao regime rígido a que estão submetidos pelas forças de ocupação e à incompetência de suas próprias autoridades. Não existe canalização para fazer chegar a água até as plantações, nem a administração municipal usa de forma racional a única nascente que lhes foi deixada pelos israelenses.
Às 10 horas, quando a temperatura fica demasiadamente quente, Saed troca de roupa, penteia os cabelos para trás e acende um cigarro. Fim de expediente nesse dia.
Em casa, paparicado por suas três filhas, ele deita no sofá e dorme durante uma hora. Depois vai de carro encontrar os amigos no café. Silencioso, a brasa vermelha do cigarro sob o vento da curta viagem. Por fim, Saed profetiza: “A próxima guerra no Oriente Médio será travada por causa da água”.

 

E MAIS UMA VEZ O SONHO DO CANAL

“Não, essa guerra não irromperá”, garante Raed Abu Saud, Ministro da Água e Irrigação jordaniano, que encontro alguns dias depois em Amã, a sufocante e empoeirada capital da Jordânia. Não irromperá porque, segundo ele, o “Canal Vermelho-Morto” impedirá o agravamento da crise de água.
O escritório de Abu Saud é amplo como um saguão de hotel dispõem de vários ambientes. Mal me acomodo em um dos macios estofados, e um pajem em uniforme excêntrico sai de uma porta recoberta por um tapete. Ele serve um café amargo, temperado com cardamomo.
Um dos países mais pobres em água do mundo, a Jordânia depende em até 80% da chuva. Se não chove, as lavouras morrem. Além disso, a população cresce rapidamente. O país acolheu milhões de refugiados da Palestina e do Iraque. Em Amã, o abastecimento de água é acionado uma vez por semana, durante a metade de um dia. É quando as famílias têm de encher suas latas, panelas e outros utensílios.
A Jordânia tem permissão de usar só 25% da água do Rio Jordão que, acima do Mar da Galileia, ainda flui com relativa abundância. Israel usa 50%, e a Síria, os restantes 25%. Raed Abu Saud quer pôr fim a esta miséria. Os políticos jordanianos não tratam nenhum outro projeto com tanta atenção quanto o chamado Canal da Paz, que aumentaria os recursos de água doce de seu país em 50%, de uma só vez. “A questão não é se, mas quando vamos construir o canal”, afirma o ministro da Água em tom que não admite réplica. No final de 2009, um estudo de viabilidade financiado pelo Banco Mundial abrirá – Abu Saud tem certeza – caminho para o grande sonho.

 

A água do Mar Morto contém até 33% de sais. Os minerais cristalizados são colhidos do fundo das piscinas de evaporação por meio de gigantescas fresas e amontoados em círculos, como aqui, na Companhia Arab Potash. A indústria química do lado jordaniano do mar está coberta por camadas pegajosas de poeira de sal

Mas a verdade é que na própria Jordânia existem vozes discordantes.
“É um projeto irracional”, assevera Abdel Rahman Sultan, da organização ambiental Friends of the Middle East (Amigos do Oriente Médio), em seu pequeno escritório de Amã. “Por que os lavradores israelenses precisam, de fato, exportar flores e alface para a Europa? E por que cultivamos bananas, para cujo plantio gastamos 400 litros de água, por quilo de fruta, de nossas parcas reservas?

 

MAR SABA, BALUARTE MILENAR da fé cristã
O Mosteiro Mar Saba, greco-ortodoxo, situa-se no Vale de Kidron – desfiladeiro de grande simbolismo religioso. O vale liga a Cidade Santa de Jerusalém ao Mar Morto, onde – acreditam os monges – no dia do Juízo Final irá se escancarar a boca do Inferno

 

De acordo com Sultan, os lavradores jordanianos utilizam 60% das reservas de água de seu território, mas seu trabalho aporta o equivalente a não mais que 3% do Produto Interno Bruto do país. Além disso, haveria hoje desperdício de 30% da água potável da Jordânia, que escoa pelos vazamentos dos encanamentos.

 

Ao lado do diminuto portão, um peregrino aguarda permissão para entrar em Mar Saba. O mais antigo mosteiro greco-ortodoxo ainda habitado por monges é também o mais conservador. Não existe energia elétrica; as maçãs, símbolo do pecado original no Jardim do Éden, foram abolidas. Mulheres, como estas freiras da Europa oriental que se comprimem fervorosamente contra os muros externos, não são admitidas.

Sultan tem uma contraproposta: “Os políticos dos três países (Israel, Jordânia e Palestina) se reúnem e elaboram um plano: de quanta água dispomos e qual a forma mais racional de usá-la? Seria uma boa base para a paz!”. Paz?
Dois inimigos compartilham o mar mais baixo da Terra; dois países cujos povos praticamente nada conhecem um do outro. Poucos israelenses e poucos jordanianos sabem qual é a margem oposta do Mar Morto. Sempre ouço a mesma pergunta: “Como é lá do outro lado? O que se esconde por trás daquelas luzes?”.

 

A Jordânia mantém uma “reserva natural localizada no ponto mais baixo do mundo”. Israel, também. E nos dois países existe uma coluna de sal batizada como “Mulher de Lot”, referência à figura bíblica que olhou para trás, para a cidade de Sodoma em chamas, e por isso foi castigada por Deus.
A margem jordaniana do Mar Morto é a mais íngreme e bonita; e a mais isolada e menos conhecida. Barreiras nas estradas aqui são mais numerosas do que em Israel, mas os soldados são mais simpáticos. “Bem-vindo à Jordânia”, eles dizem sorrindo. A economia jordaniana floresce. Muito se investe na indústria do turismo local. São poucos os hotéis de luxo às margens do Mar Morto, mas cartazes anunciam planos grandiosos. Neles se incluem projetos de milhares de quartos de hotel, complexos habitacionais e um campo de golfe. Até os ecologistas do grupo Friends of the Earth (Amigos da Terra) são a favor da expansão do turismo – porque um litro de água que flui por um chuveiro de hotel – ou borbulha em uma piscina – traz, visivelmente, mais lucros do que a mesma quantidade do líquido espargido sobre uma lavoura de tomates.

 
ENTRE BEDUÍNOS

Não é fácil se orientar nas pistas esburacadas muito acima da margem jordaniana do Mar Morto.
Como fantasmas surgidos do nada, aparecem dois jovens que pedem carona. Eu os levo, mesmo que não possamos trocar uma única palavra compreensível. Eles cheiram a jumento e carneiro; com gestos indicam o caminho sobre o planalto deserto.

O beduíno Abu Musa e seu clã habitam um verdadeiro camarote com vista para o Mar Morto, em um altiplano, 600 metros acima da superfície dessa lâmina d’água. Vez por outra os homens levam suas cabras até o mar, para um banho de sal contra parasitas.

Anoitece. Paramos diante de uma barraca, costurada com saquinhos plásticos. Um beduíno de barba branca sai e me convida a entrar, com a naturalidade de quem estava me esperando. Dentro, uma dúzia de homens sentados em círculo toma chá. Uma lona de plástico preto divide a barraca. Uma mulher coberta por um véu vem do outro lado e serve uma enorme travessa de arroz, coroada por uma cabeça de carneiro. Sentamos sobre esteiras finas e comemos com as mãos. O mais velho dos homens me oferece os melhores pedaços de carne. Eu aceito, protestando.
A lua despontou acima dos rochedos. Os homens vão para fora, desenrolam pequenos tapetes e começam a orar. Depois, a maioria se despede; as mulheres levam colchões para o deserto. O barbudo me convida a ficar. Sorridente, ele me cobre e me deseja boa noite.
À distância brilham as luzes de Belém e de Jerusalém. Não consigo dormir durante horas, e isso por três bons motivos: a beleza da natureza me comove, os cachorros uivam e o cobertor do velho me impede de respirar – tão intenso é o cheiro de animal nele impregnado.
No dia seguinte consigo finalmente romper o silêncio. Com a ajuda de um intérprete que chamei por telefone da vizinha Amã, descubro quem me dispensou tão hospitaleira acolhida: o beduíno Abu Musa. Aos 70 anos, ele vive aqui no altiplano de Homret-Maáin com três filhos, dez netos, uma bisneta e 350 cabras. Musa revela que sua posse mais preciosa é um binóculo e declara que jamais se mudaria para a cidade – mesmo que lhe dessem uma casa de presente. Ele ama dormir sob o céu estrelado. Além do mais, tudo aqui é muito silencioso. Assim, ele não vê razão para deixar o lugar em que viveu toda a sua vida.
Até 1985 a família possuía camelos, que depois foram trocados por um carro, conta o beduíno. Mas o veículo tem suas desvantagens: “Carro fica parado quando não tem gasolina, mas camelo continua andando, mesmo que esteja com fome”, observa.
Hoje em dia, Abu Musa passaria fome. Este é o ano mais seco que ele já experimentou. Normalmente, a grama cobre o altiplano como uma penugem, mas agora os beduínos precisam andar horas com seus rebanhos para encontrar as últimas manchas verdes. O preço das cabras caiu pela metade; o da ração dobrou.
Qual é a opinião dele sobre a luta pela água? Sobre o canal? Abu Musa reage com gestos de quem descarta a ideia. A cada dois anos ele desce, em companhia de seu rebanho, para que as cabras se banhem no Mar Morto e, dessa forma, se livrem dos parasitas. Fora isso, o mar lá embaixo não lhe interessa.
NEVE NO DESERTO

A maior indústria química de Israel, a Dead Sea Works, fica a poucos quilômetros da fronteira jordaniana. Mas na parte sul desse litoral não existe uma passagem entre os dois países. É aqui que minha tentativa de circundar o Mar Morto fracassa. Portanto, retorno ao norte, para perto de Jericó, a fim de aguardar o ônibus que atravessa a fronteira (sobre o qual ninguém quer me dizer quando – e se – chegará).
Finalmente chego a Dead Sea Works. A fábrica fica no Monte Sodoma, uma gigantesca montanha de halita (cloreto de sódio). De minuto em minuto, caminhões carregados de sal potássico saem da fábrica, largando atrás de si um véu de pó branco que se espalha pela estrada. O porteiro me entrega uma máscara de gás, e eu assino um documento de que estou ciente do risco de morte por explosão, envenenamento e eletrocussão no interior da planta industrial.
Depois assisto ao filme de publicidade: um quarteto de cordas, em macacões de trabalho azuis, faz a música de fundo. Um locutor com voz sonora fala em superlativos. Os preciosos sais do Mar Morto são obtidos em piscinas de evaporação espalhadas por uma área de 150 quilômetros quadrados: “a maior instalação de produção de energia solar do mundo”. O Mar Morto pode ser considerado qualquer coisa, exceto morto. Ele dá vida ao mundo!
O carbonato de potássio – ou potassa – é um componente de adubos tão importante quanto o nitrogênio e o fósforo. Dez por cento das jazidas de sal potássico mundiais provêm do Mar Morto. E como o mundo tem fome (porque um número cada vez maior de pessoas quer comer filé em vez de sopa de cevada), a demanda por esse produto explodiu. Em apenas um ano, o preço da tonelada de potassa atingiu mil dólares; e, no prazo de cinco anos, uma ação do conglomerado-mãe da Dead Sea Works – a ICL Chemicals – multiplicou por dez seu valor.
O filme apenas omite que a Dead Sea Works e sua contraparte jordaniana, a Arab Potash Company, deixam evaporar anualmente 300 milhões de metros cúbicos de água para extrair os minerais. Vinte por cento da perda de água no Mar Morto são debitados nas contas das duas indústrias químicas. Não teriam elas de repor essa água?
“Isso não seria um problema”, reage Noam Goldstein, um dos diretores da Dead Sea Works. E faz o cálculo: a água hoje dessalinizada custa 50 centavos de dólar por metro cúbico. Portanto, cada uma das duas fábricas teria de pagar 75 milhões de dólares para fazer a reposição da água gasta por elas do Mar Vermelho ou do Mediterrâneo. Parece nada.
E por que as empresas não fazem isto? Goldstein dá de ombros: “Porque nenhum político as obriga”. E assim, os produtores de carbonato de potássio contribuem para a redução do nível de água do Mar Morto.

 

DORMIR A CÉU ABERTO Belém brilha à distância

Eles fornecem novos argumentos aos defensores do Canal Vermelho-Morto – mas, curiosamente, rejeitam o projeto. Aliás, nesse ponto os fornecedores de potassa estão de acordo com os ecologistas, pois os engenheiros da indústria química simularam em uma piscina o que aconteceria quando se misturassem as águas do Mar Vermelho e do Mar Morto. O resultado é gesso, e um malcheiroso – e venenoso – ácido sulfídrico. Na verdade, os dois tipos de água não se misturam perfeitamente. A mais leve, do Mar Vermelho, fica boiando por cima.
Segundo Goldstein, não se sabe ao certo se essas reações ocorreriam em grande escala. Se a resposta fosse positiva, seria uma catástrofe “para todos”, diz o executivo – para a Dead Sea Works, responsável por 1,5% do Produto Interno Bruto de Israel, para o movimento turístico dos banhistas, para um mar que é único no mundo.
Quando volto para o estacionamento, uma camada branca de sal recobre meu carro. Como se houvesse nevado no deserto.

O redator de GEO Ariel Hauptmeier, 39, foi revistado diversas vezes por guardas de fronteira israelenses, até no aeroporto de Tel Aviv, quando ia embora, onde foi obrigado a se despir até as cuecas. O fotógrafo americano George Steinmetz, 51, chegou a ser detido por pouco tempo, depois de sobrevoar com um ultraleve e uma câmera as praias artificiais israelenses de En Bokek. Uma banhista que achou que ele era voyeur, chamou a polícia.

Fonte:  http://filhosdehiran.blogspot.com

Leonardo Loubak
Leonardo Loubak
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